Após descobrir uma gestação de gêmeas siamesas toracópagas, com cardiopatia complexa, pois as duas tem apenas um coração, onde a viabilidade de vida extrauterina é quase nula, levou uma moradora da cidade a recorrer à Justiça para interromper a gravidez, que inclusive poderia colocar sua vida em risco.
A ação inicial foi apresentada à Vara do Júri e da Infância e Juventude da Comarca de Presidente Prudente, em julho deste ano, onde o juiz responsável entendeu que o caso não se equiparava aos cenários de anencefalia, cuja interrupção é autorizada automaticamente desde a decisão do STF na ADPF 54. Assim, mesmo diante dos laudos médicos que apontavam inviabilidade de vida, o pedido foi negado.
Diante da negativa, a gestante recorreu ao TJ/SP. No recurso, destacou-se que manter a gravidez representava riscos significativos à saúde da mulher e que, segundo exames, as gêmeas não tinham qualquer possibilidade de sobreviver fora do útero devido à malformação cardíaca compartilhada.
O Tribunal reformou a sentença e autorizou a interrupção. O acórdão, publicado no início de setembro, determinou que a Secretaria Estadual de Saúde, por meio da DRS de Presidente Prudente, providenciasse a unidade hospitalar responsável pelo procedimento, reconhecendo a urgência e a gravidade do caso.
Por tramitar em segredo de justiça, as informações públicas disponíveis são limitadas, mas suficientes para demonstrar a complexidade do episódio, no âmbito médico, jurídico e humano.
Impasse médico e descumprimento de ordem judicial
Após a decisão, a gestante foi direcionada ao Hospital de Base de São José do Rio Preto. Contudo, ao chegar ao local, foi informada de que, devido à alta ocupação e ao fato de não pertencer àquela regional, seria contrarreferenciada para a unidade de origem.
Na prática, o Estado deixou de cumprir a ordem judicial, mesmo com solicitação de vaga de urgência e já registrada no sistema CROSS.
Esse impasse levou à abertura de uma nova ação, dessa vez para obrigar a realização do procedimento no prazo máximo de três dias, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. A urgência tinha respaldo nos laudos que apontavam risco à vida da gestante e inviabilidade fetal.
Casos como este são raríssimos. Dados médicos indicam que gêmeos siameses toracópagos ocorrem em cerca de um nascimento a cada 250 mil. Ainda assim, o número corresponde apenas a casos de nascidos vivos, sem incluir situações de inviabilidade total como a registrada em Prudente.
A advogada que acompanha o caso avaliou que o processo revelou “um contraste marcante entre a formalidade rígida da sentença de primeiro grau e a sensibilidade humanista do acórdão do TJ”. Segundo ela, a gestante enfrentou falta de acolhimento e falhas técnicas no atendimento, situação que agrava o sofrimento físico e emocional.
Decisão do Tribunal e o entendimento jurídico
Ao julgar o recurso, a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ/SP entendeu que, embora não se trate de anencefalia, o caso apresentava situação idêntica de inviabilidade de vida extrauterina. O relator destacou que, quando não há vida em potencial, o bem jurídico protegido pelo crime de aborto deixa de existir.
O Tribunal aplicou, por analogia, o entendimento da ADPF 54, reconhecendo que impor à gestante a continuidade de uma gravidez sem qualquer chance de sobrevida configura tratamento cruel, desumano e degradante. Esse ponto foi reforçado por pareceres convergentes do Ministério Público e da Procuradoria de Justiça.
Os pareceres ressaltaram que os fetos eram unidos pelo tronco e compartilhavam um único coração com cardiopatia grave, quadro apontado pela literatura médica como absolutamente incompatível com vida extrauterina. Assim, a interrupção não configuraria crime e seria necessária para resguardar a saúde física e mental da gestante.
Com a autorização, o processo passou a não apenas corrigir uma decisão considerada desconectada da realidade médica, mas também a afirmar que, em situações de inviabilidade comprovada, a autonomia da mulher e sua integridade devem ser priorizadas.
Um caso que abre debate nacional
O episódio, pela raridade e pelas divergências entre as instâncias judiciais, reacende um debate que ainda não está pacificado no Brasil: a interrupção de gestações inviáveis deve depender de autorização judicial?
A legislação atual prevê autorização automática apenas para fetos anencefálicos, após decisão do STF. Casos como o registrado em Presidente Prudente — embora igualmente sem possibilidade de vida — ainda dependem de judicialização, laudos, pareceres e, muitas vezes, enfrentam entraves burocráticos e institucionais.

A demora na resposta estatal coloca em risco a saúde da gestante e, como neste caso, gera situações em que decisões judiciais não são cumpridas por falhas do sistema de saúde. Para especialistas, uma legislação específica poderia trazer segurança jurídica, reduziria sofrimento e impediria que mulheres fossem obrigadas a carregar gestações inviáveis até estágios perigosos.
O debate também envolve bioética: deve-se proteger uma vida que não tem qualquer custo, mesmo sendo impossível sua continuação fora do útero? Ou o Estado deve preservar, acima de tudo, a vida e a saúde da mulher, como entendeu o TJ/SP.
Enquanto não houver regulamentação clara, casos como o da prudentina continuarão dependendo da sensibilidade individual de juízes, promotores, médicos e gestores.




